sábado, 21 de novembro de 2009

Minha Gatinha Maltratada

          Está conosco há relativamente pouco tempo e, por isso, ainda "nos estudamos" um ao outro, com a cautela necessária do medo. Afinal, consta que ela foi muito maltratada (e já conta com aproximadamente 13 anos). Veio com o nome "Kika", mas tenho, por princípios emocionais, não chamar um animal nessas condições pelo nome cujo som possa evocar "lembranças" tristes. Contudo, ainda não encontrei um nome para ela. Pensei em "Branquinha", mas não gostei; "Algodão", mas ela também não é tão "fofa" assim (os outros gatos que o "miem"); quis mais: escolher um nome em tupi-guarani, mas não funcionou (primeiramente porque é difícil para quem não entende a língua meter-se a "juntar" pedaços, correndo o risco de falar bobagem). Chamo-a de "minha filha", enquanto isso.

          Já houve algum progresso, ou melhor, bastante progresso. Ela não permitia sequer a aproximação, sem aqueles amistosos "tapas" com as garras expostas (bendita tintura de iodo a 2%!). Hoje, e tenho certeza de que ela "pensa" que eu não vejo, quando estou no lusco-fusco da mente obnubilada pelos remédios, ela "se enfia" sob minha mão e se esfrega com prazer, parece-me desconhecido por ela, em meu braço - gesto, aliás, típico dos gatos, tidos ainda como animais "ariscos", "independentes", "interesseiros"; essa visão não passa de reflexos antigos da época em que os ratos eram cultuados por representarem a prosperidade e a capacidade reprodutora, e seus predadores naturais eram queimados vivos, enquanto os perpetradores da façanha cantavam e giravam em torno das piras da ignomínia. Enfim, eu finjo que faço movimentos "involuntários" e ela se deleita para, depois, deitar-se aos meus pés.

          Tento administrar a ciumeira geral. Trato a todos igualmente, afinal sou o "macho-alfa" aqui. Não permito que ela persiga os outros e nem que os outros a persigam. Bendito o ser humano que, num raciocínio simples mas totalmente lógico, criou aqueles borrifadores de água - muito utilizados (ou estou ultrapassado?) por quem "passa" roupas. Uma borrifada aqui, outra ali, e a paz volta a reinar, sem grandes traumas.

          Talvez seja impróprio para um ser humano dizer isso, mas tenho facilidade para amar os animais (lógico) e, principalmente, os "lazarentos", os "execrados", os "excluídos". Desde minha infância, por exemplo, lembro-me de amar os urubus, os gambás (a nossa velha e querida cuíca), os morcegos, as lagartixas, e por aí vai. Lembro-me, também, de certa feita, quando minha mãe precisou resolver alguns problemas na rua e, obviamente tive que acompanhá-la. Do ônibus, vi um cachorro esquálido (sabem aqueles cães "amarelos" que costumam multipovoar o grupo dos cães de rua?) tentando alcançar uma lata de lixo cuja "boca" estava alta demais para ele, enquanto a "turba multa" divertia-se, com o riso dos inconsequentes. Perguntei, com minha eterna dor: "Mãe, como se chama o médico que cuida dos animais?". Ela me olhou (e juro que ela já sabia o motivo da pergunta!) e disse: "Veterinário". De pronto, respondi: "Quero ser Veterinário quando crescer!".

          Talvez não explique muito, mas quando olho para a "mal-humorada" felina, todas as lembranças reviram-se e meu peito só sabe dizer: "Seja bem-vinda, minha filha!".

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

"Soneto do Só" (Parábola de Malte Laurids Brigge) - Vinícius de Moraes

          Depois foi só. O amor era mais nada
          Sentiu-se pobre e triste como Jó
          Um cão veio lamber-lhe a mão na estrada
          Espantado, parou. Depois foi só.

          Depois veio a poesia ensimesmada
          Em espelhos. Sofreu de fazer dó
          Viu a face do Cristo ensanguentada
          Da sua, imagem - e orou. Depois foi só.

          Depois veio o verão e veio o medo
          Desceu de seu castelo até o rochedo
          Sobre a noite e do mar lhe veio a voz

          A anunciar os anjos sanguinários...
         Depois cerrou os olhos solitários
        E só então foi totalmente a sós.













quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Bertha Celeste Homem de Mello

          Filha de fazendeiros, escreveu, da cidade de Pindamonhangaba, em 1942, famosos versos que enviou à Rádio Tupi, em meio a cerca de 5000 outras cartas, como participante de um concurso promovido pelo cantor Almirante (Henrique Foréis Domingues), e que tinha por jurados Olegário Mariano, Cassiano Ricardo e Múcio Leão, membros da Academia Brasileira de Letras. A intenção de Almirante, que apresentava um programa na referida Rádio sobre música brasileira, era instigar mentes criativas a descartar o estranho e monótono "happy birthday to you", e marcar, em Língua Portuguesa, a representação da comemoração (a melodia já era mundialmente consagrada) do natalício de alguém.

          Fervorosa e carinhosa senhora! Além da graciosidade dos versos, ela fora uma das poucas concorrentes que quebraram a repetição de um verso só, o que encantou o júri. Vamos a eles:

          "Parabéns a você,
          Nesta data querida!
          Muita felicidade,
          Muitos anos de vida!"
          Após o inesperado sucesso, doutorou-se em Letras e passou a dedicar-se à poesia (livro "Devaneios", de que não encontro mais referências, infelizmente). Aos 54 anos de idade, mudou-se para Jacareí, onde lecionou por quase dez anos, vindo a falecer, em 1999, vítima de pneumonia.

          O pequeno relato é "filho" de bendito texto, escrito por Max Gehringer para a Revista Superinteressante, em 2001.

          Que, ao menos, pensemos na dedicada senhora que, com cinco minutos de seu tempo, alegra-nos até hoje, nas referidas festas, e tentemos cantar a música corretamente.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

"Saudade" - Augusto dos Anjos




Hoje que a mágoa me apunhala o seio,

E o coração me rasga atroz, imensa,

Eu a bendigo da descrença, em meio,

Porque eu hoje só vivo da descrença.


À noute quando em funda soledade

Minh'alma se recolhe tristemente,

P'ra iluminar-me a alma descontente,

Se acende o círio triste da Saudade.


E assim afeito às mágoas e ao tormento,

E à dor e ao sofrimento eterno afeito,

Para dar vida à dor e ao sofrimento,


Da saudade na campa enegrecida

Guardo a lembrança que me sangra o peito,

Mas que no entanto me alimenta a vida.